ÓPERA-BUFA #03 Quando o Matogrosso passa pelo Siará
da vida, dos mortos e dos caminhos tortos
Duas imagens racham o visor em perfeita assimetria. Siameses do gesto e da voz, ney e jesuíta são uma só carne, corpo e modo de dizer não. Ao fundo, Sangue Latino (1973) verte como um feitiço que, se não fosse pela familiaridade da imagem antiga, não se saberia quem interpreta quem.
Conformidade é antônimo do pavão misterioso, à esquerda da tela e gaúche na vida, ora encolhido, ora escancarado nos adereços febris. Nada de tons neutros: há catarse nas cores, nos brilhos e nos gestos desenhados pelo rodopiar dos quadris.
O amante do espelho faz do corpo laboratório, onde o traço do lápis e a maquiagem dão rosto ao seu bicho interior. Um cientista do símbolo, que experimenta até encontrar a máscara exata para revelar o que há em seu inconsciente.
Vislumbrei ney ao vivo duas vezes em vinte anos de respiração ininterrupta. Digo vislumbre porque só assisti seria pouco, quase desrespeitoso. Foram cinquenta eternidades condensadas em minutos que repugnam adjetivos.
A cena não se descreve: traz arrepios à pele, é aspirada pelo nariz como incenso antigo e ouvida pelo coral uníssono da plateia, admiradora daquele cantor-ator-feitiço. É dourado dos pés à cabeça que ney, literalmente, brilha no palco, como uma estrela que se recusa a apagar.
Aprendemos que, antes de qualquer canção, veio o rito, o desejo de arte em carne viva. Ney de Souza Pereira, que carrega sobrenomes tão comuns quanto o sangue latino dos trópicos, quis mesmo foi ser exceção, preferindo ser os dois: obra de sua própria autoria.
Em imagem e som, ney canta olhando olho no olho, direto para a lente, de qualquer jeito “olhando para quem está em casa”. A matriz da teatralidade aqui se renova. Ney tem disso. Nos faz duvidar da existência do tempo, da cronologia, e nos torna crentes do vigor de uma fonte de juventude.
Das oito bilhões de vozes barulhentas, é a fina e aguda, com textura de plumas, que se destaca no coral. Dum ser não-identificado que ousa ser o que se é. Mais que uma atitude para contrariar as vontades do pai, é coisa de alma velha, experiente.
Além do palco, ney é como eu, como você. Gente observadora do tipo que vê o gesto despercebido e o passo arrastado. Sem o dourado, é espelho do tempo que escorre, que observa em silêncio uma sociedade torta, mas teimosa em rejuvenescer.
E a eternidade se torna verdade através e pela arte. Jesuíta Barbosa, nordestino desenhado pernambucano, artista com passagem pelas terras alencarinas, traz e leva a arte do Siará. Da capital de sal, do chão queimado de sol e do palco em que a fala dança e a palavra não se cala.
Através da dignidade do gesto exagerado, do luxo do corpo livre que nunca foi domesticado, jesuíta dá um verdadeiro show em cena, de jeito que, já nos trailers, o tamanho potencial era (re)conhecido e comentado. Uma biografia descritiva de duas horas e meia em tela com missão de fazer jus aos oitenta e três anos em vida
Corpos com histórias e trajetórias diferentes: ney sempre foi magro; jesuíta teve de emagrecer doze quilos para o papel; ney tem os acordes afinados de nascença; jesuíta realizou aulas de canto. A direção deixa claro a não-vontade de mimetizar ney, mas sim recriá-lo, fazê-lo renascer.
O detalhismo do trabalho traz o público, sem hesitação, àquela época, àquele corpo, àquela rebeldia feito arte. Ver o filme é como se o presente nos abrisse passagem para dentro da pessoa que Jesuíta cuidadosamente acendeu.
A plateia não assiste, reage. Canta, se remexe, se comove. Há algo de ancestral na experiência: um chamado ao nosso eu-ator, àquela parte de nós que quer dançar, performar, sentir junto. É como se cada olhar, cada gesto, cada sílaba entoada pela tela nos lembrasse que, em algum lugar dentro de nós, também vive um Ney: selvagem, sensível, desobediente, devolvido ao mundo com sua alma cativa.
Que texto crítico bonito! Ainda não assisti, mas depois de ler isso, deu ainda mais vontade!